Procuraram Vitória até dez dias e foi 
 Encontrada com ferimentos graves depois 
 Dona Vilma pranteou, lamentou 
 A filha na colisão perdeu a visão 
 Ficou cega, sem boi e enterrou Ernesto, o pai de Vitória 
 Seu esposo morto com o rosto exposto 
 Só o resto, viúva e pávida 
    Sem lenço, sem documento, sem luva e grávida 
 Sem o calor do seu preto 
 A vergonha persegue e a serve de graça 
 Fracassa, sozinha e ainda ela sonha 
 Se arrepende por inteiro e declara ao carteiro 
 O seu grande amor, companheiro 
 Em casa sem cerimônia, carteiro dos infernos 
 Imundo, complexo, tirou a pureza de Vitória, violou seu sexo   
 Vilma sem chance 
 Gestante, fugiu, mas voltou 
 E mandou a menina pra casa do tio 
 Vitória generosa, benévola, pérola 
 Anjo com auréola, bondosa, um xodó 
 Amava a chuva, a lua 
 Pegava animaizinhos na rua   
 Levava pra casa da vó 
 A lembrança é madura, insegura 
 Sofreu quase tudo na vida dura 
 E venceu os tabus 
 O ódio perdeu, ela viu a mão de Deus 
 Mesmo com olhos que não olham ela viu uma luz   
 Pois nasci e nunca vi o amor 
 E ouço dele sempre falar 
 Pelo que sei ele é eterno 
 Mas rogarei ao meu Senhor 
 Que me mostre o tal amor 
 E me ampare de toda dor   
 A filha tranquila, já com a família em Goiás 
 E seu irmão Edvaldo em São Paulo logo atrás 
 Sem respaldo dona Vilma jogou o menino Silva 
 Num buso confuso, clandestino, no Braz normal 
 Parou em outro rumo como um intruso 
 Terminou no interior, perdido 
 Mas não chegou na capital   
 Se perdeu tentando se achar 
 No centro-oeste, jura? 
 Caminho com as canela, oferece até a sepultura 
 Às sete chaves, só no cafundó 
 Perambulando, procurando sua família em algum mocó 
 Edvaldo com saldo, dá sorte no vermelho 
 Viajou por toda parte e foi a Marte de joelho, até que: 
 Ei, moço! Tava te esperando, já vai começar a reunião   
 Sente vivo, protegido por um laço 
 Nunca vai se esquecer da voz chamando moço (ei, moço! Você de costas) 
 Quando molhou o rosto e chorou em pedaços 
 Da sensação daquele abraço, daquela noite 
 Que o arrebatou-te como se fosse a expressão mais doce   
 A alma iluminada com o seu melhor sorriso 
 As nuvens derramavam gotas do paraíso ao léu 
 Declarou aos quatro ventos e a moça dos panfletos 
 Que era filho do Senhor, Imperador dos Céus 
 Aquela voz arenosa recorda sua história 
 Aquele semblante marcante encontrou Vitória   
 Pois nasci e nunca vi o amor 
 E ouço dele sempre falar 
 Pelo que sei ele é eterno 
 Mas rogarei ao meu Senhor 
 Que me mostre o tal amor 
 E me ampare de toda dor   
 Vitória sorria e só via por tato 
 Apalpava texturas, brochuras 
 Ouvia passos, ruídos e ecos 
 Efeito cortina, sua retina sem serventia, olhos de boneco 
 Edvaldo concerta seu mundo com martelo e prego 
 Endireita sua sombra, seus sonhos, seu credo 
 Seu espírito cresce e fortalece como árvore   
 Decidido e forte na palavra ou no mármore 
 De volta pra vida com endereço e família 
 Da casa é devoto do mesmo modo que respira 
 Emprestava seus olhos pra ver mais filmes no cinema 
 E recitava poemas, era como ela lia 
 Com olhos cedidos, emocionados, cheios d'água 
 Por Vitória dava a vida, dava a vista e declarava 
 Onde estiver estarei com você, prezada irmã   
 Sangue do meu sangue, te amo e sou seu fã 
 Te dou minha amizade e o meu ombro, tudo em dobro 
 Meus sentidos, meu infinito e te dou meu amanhã 
 E num exame de rotina retira a retina 
 Olhos castanhos com um pouco de lágrima e miopia 
 E ele com dois lotes, sem córnea ou pupila 
 Arranca, se mutila por ela   
 Edvaldo com um sorriso solar, singular 
 De prazer chegou no lar 
 Queria ler, e Vitória leu Salmo 
 O Senhor é minha luz e a minha salvação, a quem temerei? 
 O Senhor é a força da minha vida, de quem me recearei?   
 Pois nasci e nunca vi o amor 
 E ouço dele sempre falar 
 Pelo que sei ele é eterno 
 Mas rogarei ao meu Senhor 
 Que me mostre o tal amor 
 E me ampare de toda dor   
 Pois nasci e nunca vi o amor 
 E ouço dele sempre falar 
 Pelo que sei ele é eterno 
 Mas rogarei ao meu Senhor 
 Que me mostre o tal amor 
 E me ampare de toda dor   
 Quem temerei? O Senhor é a força da minha vida 
 Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo 
 À sombra do Todo Poderoso descansará